Mesa para um

Era uma tarde chuvosa, o céu estava escuro e envolto em nuvens carregadas, assim a água caía pela cidade, a deixando ainda mais cinza do que o normal. O detetive Ledlur tinha acabado de terminar o expediente e saía do escritório em seu carro, durante seu percurso, ainda não muito distante do ponto de partida, acabou inevitavelmente preso em um engarrafamento, o esperado devido ao tempo. Ele então liga o som do carro em uma música e se reclina no banco repousando a cabeça na mão esquerda que se apoia com o braço na janela da porta, é então que vira o rosto levemente para o lado direito e, de repente, vê alguém que ele conhece apenas de vista, nem sequer sabe o nome, mas que sabia que trabalhava no mesmo prédio que ele, pois já havia dividido o mesmo elevador e, às vezes, se encontravam nos cafés e restaurantes da região, embora nunca tivessem conversado, ou até mesmo se cumprimentado, mesmo assim o coração de Ledlur começa a apertar, uma ansiedade surge de sua barriga, misturada com uma euforia inexplicável, ele fica assim por alguns breves instantes, mas vira o rosto rapidamente no mínimo risco de um cruzamento de olhares, seguindo o seu caminho quando o trânsito permite.

O último relacionamento de Ledlur, ou melhor, o primeiro relacionamento sério dele, não terminou bem, aparentemente sua autoestima altamente elevada, unida com sua total falta de compreensão e de empatia não são características muito agradáveis em um namorado, ao menos foi isso que ele ouviu antes do término, acontece que, dentro de toda a sua experiência de vida, Ledlur dificilmente aceitava demonstrar qualquer fraqueza ou falha, isso em todos os aspectos de sua vida e, no decorrer deste namoro, ele estava, aos poucos, conseguindo até mesmo demonstrar esse seu lado mais "humano", todavia, ao ter o relacionamento encerrado, tomou toda essa vivência como um aprendizado para não dar mais abertura para que essa situação voltasse a acontecer, logo, decidiu não manter mais qualquer relacionamento sério, ou até mesmo, manter qualquer paixão que ousasse surgir, para ele ninguém seria digno o bastante para lhe causar esse tipo de desconforto novamente. Por este motivo, está tentando ao máximo abafar e superar essa paixonite atual, uma luta que já dura meses.

Normalmente, após o trabalho, Ledlur iria para a casa e, após um tempo, esquentaria sua janta, pediria uma refeição ou jantaria fora, porém, devido ao tempo que ficou no trânsito, hoje decidiu ir direto para um restaurante. Ao chegar no estabelecimento, ele senta em uma mesa ao lado de uma janela e, enquanto olha para a fora e vê a chuva cair, pensamentos oriundos de sua paixão começam a invadir sua mente, imagina como seria o seu jantar estando acompanhado, sobre o quê conversariam, o quão bom seria sentir e deixar tudo acontecer...

"Você não precisa disso, esses 'sentimentos' só te atrapalham, eu tenho trabalho a fazer e deveria focar nisso" - diz Ledlur para ele mesmo.

"An... Senhor? O senhor disse algo?" - pergunta o garçom, que aparentemente estava ao lado o tempo todo e pode sim ter ouvido o momento de "autocontemplação" anterior.

"Eu disse que preciso do menu para escolher um prato" - informa Ledlur rispidamente.

"Bem, aqui está" - responde o garçom enquanto entrega o menu para ele. "Quando o senhor decidir o prato, ou se precisar de qualquer outra coisa, é só me chamar"

"Certo, obrigado" - responde Ledlur com desdém, o garçom saí em seguida e ele começa a escolher o prato, nem mal inicia e já se espanta ao ver entrando no restaurante, nada mais, nada menos, que seu objeto de paixão, ele acompanha toda a sua trajetória até a mesa que, para ajudar ainda mais, ficava totalmente contida em seu campo de visão, é então que bruscamente levanta o cardápio e desce a cabeça, cobrindo sua face: "Por, Odin! Por que aqui? Há vários restaurantes por aí e essa criatura tinha que vir logo nes..." - diz Ledlur antes de ser interrompido com um outro cardápio sendo colocado na frente de seu rosto, se vira e vê o garçom novamente ali, sua expressão é de breve espanto, mas logo fecha de uma maneira mais do que perceptível enquanto olha para ele: "Eu ainda não escolhi o prato" - declara com um ar de impaciência.

"Desculpe, senhor. É que eu tinha esquecido de lhe entregar o menu de bebidas" - conta o garçom, um tanto quanto encabulado.

"Deixa para lá. Eu vou querer o de sempre: me traga um salmão caprese e, para beber, um suco de abacaxi" - informa.

O garçom então anota o pedido, recolhe os cardápios e parte para solicitar o preparo do prato. Assim Ledlur fica novamente sozinho na mesa, esperando, seu olhar, por mais que tentasse resistir, eventualmente se pegava voltado para aquela mesa em especial, a única que ele queria evitar, um comportamento que parecia ser mais forte que ele. Estava difícil estar naquele lugar, vendo a pessoa que gosta sentada praticamente na sua frente e, acima de tudo, sozinha, ele imaginava como seria se ele fosse até aquela mesa e puxasse assunto... O que teriam em comum? Quais seriam as suas diferenças? Seria muito estranho puxar assunto assim? Quando se notou preso nesses pensamentos, logo abaixou a cabeça, fechou os olhos e colocou as mãos sobre a testa: "Você é melhor que isso, eu sou um detetive do império, eu tenho um trabalho muito importante e não posso me deixar levar por esse tipo de coisa. Eu preciso..." - começa a declarar até ser novamente interrompido pelo garçom, dessa vez ele estava trazendo o pedido.

"An... Desculpe interromper, estou trazendo o seu pedido" - diz o garçom acanhado.

"É... estou vendo" - reage Ledlur com sua famosa ironia. "Você tem um sentido, né? Ou sei lá, parece que você vê minha boca se abrir e vem aqui ficar do meu lado pra ouvir, não é?" - completa enquanto o garçom coloca o prato e o copo sobre a mesa.

"Me desculpe, senhor. Não foi minha intenção" - responde o garçom, ainda mais encabulado depois dessa reação.

"Que seja. O que foi dito, foi dito e o que foi ouvido, foi ouvido. Não há como mudar o passado" - filosofa Ledlur, fazendo um sinal para o garçom sair, o qual obedece e se retira rapidamente.

Quantas mentiras e desculpas temos que inventar para nós mesmos a fim de justificar nossas ações? O que nos faz incapazes de alcançar ou manter a felicidade? O que é realmente importante? Se nossas ações estão corretas, porque não nos sentimos completos? O que falta? Será que nos falta coragem para encarar a nós mesmos e descobrir o que realmente procuramos? Temos medos de qual seria a resposta a essa pergunta? Certamente Ledlur não encontraria as repostas para essas perguntas naquela noite, ele decidiu simplesmente continuar sua refeição e, mais uma vez, deixar de lado essa reflexão, até porque, ao menos ao que lhe parecia, tudo já havia sido respondido.

Resta-nos apenas esperar que ao menos trate de sua estranha mania de conversar consigo mesmo em voz alta.

1668, Fulguras

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